“Ana, Meu Amor” (2017): humano, demasiado humano

Entre a agonia e o êxtase, drama romeno retrata relacionamento subjugado por distúrbios psicológicos

Lucas Bandos Lourenço
3 min readMar 4, 2019

Não por acaso, a primeira cena de Ana, Meu Amor (2017) se dá num alojamento estudantil, em meio a uma discussão entre os protagonistas, Ana (Diana Cavallioti) e Toma (Mircea Postelnicu), a respeito dos equívocos mais comuns na leitura da obra de Nietzsche. Também não é gratuito que, do apartamento contíguo, emanem ruídos nada discretos, capazes não só de interromper o diálogo dos dois, mas de culminar numa angustiante crise de ansiedade por parte da garota.

Em pouco mais de cinco minutos de projeção, o diretor Cãlin Peter Netzer (Instinto Materno e Maria) já demonstra eficiência ao sintetizar os principais temas que guiarão a trama de seu quarto longa-metragem — a saber: os efeitos dos transtornos mentais sobre os relacionamentos amorosos; o embate entre a fé religiosa e a razão filosófica; e a sexualidade enquanto elemento desestabilizador do ego — , alertando o espectador para o clima de crescente incômodo que tomará conta da tela nas duas horas seguintes.

Graças à elogiável montagem de Dana Bunescu — premiada com o Urso de Prata na 67ª edição do Festival de Berlim — , somos conduzidos pela história de um casal em constante estado de alerta, não de forma linear, mas por meio de episódios cronologicamente desencontrados, que vêm à tona num fluxo semelhante ao da livre associação psicanalítica.

A psicanálise, aliás, serve como fio condutor para boa parte da narrativa. Afinal, são as sessões de terapia frequentadas por Toma que fazem emergir as mais pungentes recordações, tanto das descobertas dos tempos de namoro quanto das convulsões da vida conjugal ao lado de Ana.

E é em meio a esse quebra-cabeça de idas e vindas temporais que a complexa dinâmica de aproximações e afastamentos que se estabelece entre os personagens vai ganhando corpo, até se revelar como reflexo de uma relação patológica, na qual dominação e dependência não passam de duas faces da mesma moeda.

Aproximações entre “Ana, Meu Amor” (2017) e “Os Amores de Uma Loira” (1965)

Filiado à tendência realista que, desde meados da década passada, vem tomando conta da produção cinematográfica romena — com longas consagrados em Cannes, como A Morte do Sr. Lazarescu (2005) e 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2007) — , o filme de Netzer chama atenção pela crueza com a qual retrata os pormenores de um relacionamento subjugado por distúrbios psicológicos.

O uso da câmera na mão, sempre colada aos corpos dos atores, traduz em imagens não apenas a instabilidade do temperamento de Ana — sujeita, a qualquer momento, tanto a um ataque de pânico quanto aos efeitos colaterais de ansiolíticos e antidepressivos — , mas a própria imprevisibilidade de seu romance com Toma, cujos momentos de ingenuidade e ternura se alternam a outros de profunda dor e aflição.

Aproximando-se ora da experimentação estética e temática de um Cassavetes, em Uma Mulher Sob Influência (1974), ora da verborragia intelectual de um Bergman, em suas Cenas de um Casamento (1974), Ana, Meu Amor tem ainda elementos suficientes para nos remeter aos conflitos de Monica Vitti, no Deserto Vermelho (1964) de Antonioni, sem que se ofusque sua proximidade visual com Os Amores de uma Loira (1965), de Milos Forman.

No entanto, ainda que recoberto de referências e intertextualidades, este é um filme que se sustenta em si mesmo e que, entre a agonia e o êxtase, dá provas de seu valor, até mesmo em suas fragilidades. Trata-se, enfim, de uma obra que, à semelhança de seus protagonistas, experimenta altos e baixos, tornando-se, como eles, humana, demasiado humana.

AVALIAÇÃO: ★★★★☆ (Ótimo)

FICHA TÉCNICA:

“Ana, Meu Amor” (Ana, Mon Amour)

País/Ano: Romênia, Alemanha e França/2017

Direção: Cãlin Peter Netzer

Roteiro: Cãlin Peter Netzer, Cezar Paul-Badescu e Iulia Lumânare

Duração: 125 minutos

Elenco: Mircea Postelnicu, Diana Cavallioti, Tania Popa, Igor Caras-Romanov, Carmen Tanase, Vasile Muraru, Adrian Titieni

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Lucas Bandos Lourenço

Jornalista | Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP