Crítica |“Dor e glória” (2019): a primazia do desejo

Em seu filme mais confessional, Almodóvar passa a limpo memórias de uma vida inventada

Lucas Bandos Lourenço
3 min readSep 3, 2019

A primazia do desejo. Ao fim e ao cabo, é disso que trata o mais recente e confessional longa-metragem de Pedro Almodóvar, lançado às vésperas de seu septuagésimo aniversário. As fortes tintas autobiográficas, tão presentes em trabalhos como A lei do desejo (1987) e Má educação (2004), estão de volta em Dor e glória (2019), ainda que em tons mais sóbrios e reflexivos.

Temas como a cinefilia, o despertar sexual e a rígida educação religiosa são passados a limpo com uma comovente serenidade, poucas vezes vista na esfuziante filmografia almodovariana. Episódios de envolvimento com drogas, uma relação agridoce com a mãe (vivida, na mocidade, por Penélope Cruz e, na velhice, por Julieta Serrano) e um atribulado amor de juventude também são elementos que vêm compor esse sensível mosaico autoficcional que, não raro, se confunde com as próprias vivências do diretor.

A exemplo da célebre parceria travada entre Federico Fellini e Marcello Mastroianni, no clássico (1963), Almodóvar elege um de seus mais fiéis e frequentes colaboradores, o ator Antonio Banderas, para dar corpo ao seu suposto alter ego: o cineasta Salvador Mallo.

Acometido pela depressão e por fortes dores físicas, ele atravessa um longo período de ostracismo, subitamente interrompido pela reexibição de seu primeiro filme, Sabor, em uma sessão especial, promovida pela Filmoteca Espanhola. A efeméride o coloca novamente em contato com Alberto Crespo (Asier Etxeandia), seu velho amigo e protagonista da produção, de quem ele permaneceu afastado nos últimos trinta anos.

O reencontro dos dois desperta Salvador tanto para o vício em heroína quanto para o seu retorno à ativa, com a escrita de um monólogo autobiográfico, a ser encenado por Alberto, dessa vez no teatro. É ao longo desse processo criativo empreendido pelo personagem que adentramos suas reminiscências, às quais temos acesso de forma não linear, como que ao sabor de um fluxo de consciência.

Envolvidos pela luminosidade da fotografia de José Luis Alcaine e pela música de Alberto Iglesias, nos deixamos invadir por essas memórias de uma vida inventada, mas cuja veracidade não cessa de se manifestar, seja pela voz embargada de Banderas, seja pela exposição de sua gigantesca cicatriz, adquirida após uma cirurgia cardíaca.

Como que num aceno ao incessante jogo entre ilusão e realidade sobre o qual o próprio cinema se assenta, somos expostos à surpreendente fusão que se dá entre o corpo do ator e as dores do personagem. E é com a assombrosa força e a cruel beleza dessas imagens que Almodóvar não só coroa uma década até então pontuada por filmes irregulares — vide Abraços partidos (2009) e Os amantes passageiros (2013) — , como também atinge um dos pontos mais altos de sua já tão prolífica carreira.

AVALIAÇÃO: ★★★★☆ (Ótimo)

FICHA TÉCNICA:

“Dor e glória” (Dolor y glória)

País/Ano: Espanha/2019

Direção: Pedro Almodóvar

Roteiro: Pedro Almodóvar

Duração: 113 minutos

Elenco: Antonio Banderas, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Nora Navas, Julieta Serrano, César Vicente, Asier Flores, Penólpe Cruz, Cecilia Roth

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Lucas Bandos Lourenço

Jornalista | Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP