“O amor é estranho” (2014): a vida dos outros

Sem recorrer à pieguice, melodrama de Ira Sachs dribla armadilhas do gênero para radiografar hábitos da classe média nova-iorquina

Lucas Bandos Lourenço
3 min readMay 19, 2019

“Quando se mora com as pessoas, você as conhece melhor do que gostaria”. A frase, dita em tom de desabafo por Ben (John Lithgow), durante um telefonema ao seu companheiro George (Alfred Molina), funciona como uma boa síntese do que se vê ao longo dos 90 minutos de O amor é estranho (2014).

Coescrito pelo diretor estadunidense Ira Sachs (Deixe a luz acesa; Melhores amigos), em sua segunda parceria com o roteirista brasileiro Mauricio Zacharias (Madame Satã; O céu de Suely), esse sensível melodrama familiar vai muito além do que seu título sugere.

Mais do que o relacionamento entre o casal de protagonistas, interessa ao filme radiografar o núcleo social em que ambos estão inseridos: uma certa classe média nova-iorquina, cujo verniz intelectual e progressista já não consegue ocultar antigos preconceitos e ressentimentos.

Recém-casados, após mais de 40 anos de união informal, os dois são surpreendidos pela repentina demissão de George, agora ex-professor de música de um renomado colégio católico de Manhattan.

Em meio à busca por um novo apartamento, compatível com suas restrições financeiras, eles se veem obrigados a morar de favor, cada um em um canto. Enquanto Ben é acolhido pela família do sobrinho, Elliot (Darren Burrows), George vai parar no sofá dos antigos vizinhos, os policiais Ted (Cheyenne Jackson) e Roberto (Manny Perez).

A separação compulsória do casal logo é agravada pela inadaptação à rotina de seus anfitriões. A presença de Ben é tanto um empecilho para a produtividade de Kate (Marisa Tomei) — escritora e esposa de Elliot — quanto uma ameaça à privacidade do sobrinho-neto adolescente, Joey (Charlie Tahan). Já a estadia de George é atribulada pela rotina festeira dos jovens donos da casa, cuja sala vive apinhada de convidados.

Conforme o esperado, não demoram a surgir rusgas. E é a partir delas que o roteiro tira sua força, investindo no conflito geracional enquanto leitmotiv para os embates travados em cena. Uma escolha que, não raro, nos remete ao clássico Era uma vez em Tóquio (1953), do grande Yasujiro Ozu, mestre no registro do que há de mais humano — e, por que não, comezinho — nas relações familiares.

Sem recorrer à pieguice nem induzir o espectador ao choro fácil, o longa dribla as armadilhas do gênero, inscrevendo-se de maneira exemplar na filmografia de Sachs. Seja pelo minucioso estudo que faz das identidades masculinas, tendo Nova York como pano de fundo; seja pela inclinação artística de seus personagens, sempre envolvidos com música ou pintura, teatro ou literatura.

E, se o tema da homossexualidade ainda ganha contornos problemáticos em boa parte das produções norte-americanas, em O amor é estranho, o público é surpreendido não só pela abordagem — pouco usual, diga-se de passagem — da relação entre dois homens maduros, como também pela sobriedade do argumento, desenvolvido com leveza e concisão.

Liderado por Lithgow e Molina — dois atores veteranos, em verdadeiro estado de graça — , o elenco responde bem aos diálogos mais pungentes, conferindo um bem-vindo naturalismo às situações que compõem esse retrato de um cotidiano que, mais do que a Ben e George, pertence àqueles que os cercam.

AVALIAÇÃO: ★★★☆☆ (Bom)

FICHA TÉCNICA:

“O amor é estranho” (Love is strange)

País/Ano: EUA, Grécia e Brasil/2014

Direção: Ira Sachs

Roteiro: Ira Sachs, Mauricio Zacharias

Duração: 94 minutos

Elenco: John Lithgow, Alfred Molina, Marisa Tomei, Charlie Tahan, Darren Burrows, Cheyenne Jackson, Manny Perez, Christina Kirk

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Lucas Bandos Lourenço

Jornalista | Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP