O Brazil não merece o Brasil

Em meio à quarentena e ao caos, dei de escrever sobre Aldir Blanc, coronavírus e a morte de um país

Lucas Bandos Lourenço
3 min readMay 5, 2020
Foto: Leo Martins/Agência O Globo

Com a partida de Aldir Blanc (1946–2020), perde-se mais um pedacinho do Brasil, ou melhor, desse Brasil com “S” que, como o próprio compositor escreveu, nunca foi àquele outro Brazil, com “Z”, pelas mãos do qual o primeiro vem sendo sistematicamente atacado, espoliado e, enfim, destruído. Como já sentenciava Aldir, em parceria com Maurício Tapajós, nos idos anos 1970, “O Brazil não merece o Brasil/O Brazil tá matando o Brasil”.

Esse veredicto, eternizado na voz de Elis Regina, no álbum Transversal do Tempo (1978), nunca pareceu tão atual — e doloroso — quanto hoje, segunda-feira, 4 de maio de 2020. Dia em que não só Aldir nos deixa, mas no qual também vemos, estampada na capa do jornal carioca Extra, a imagem abjeta do miliciano genocida que acredita nos governar, encabeçada pela seguinte manchete: “100 mil infectados, 7 mil mortos”. Os números referem-se à quantidade de vítimas do coronavírus espalhadas pelo país. Aldir, acometido como foi pelos males da Covid-19, também faz parte dessa tenebrosa estatística.

Enquanto “choram Marias e Clarices no solo do Brasil”, o patético mandatário sorri para os fotógrafos e acena em direção aos poucos, porém ruidosos, párias acéfalos que ainda o apoiam. Em um dos braços, segura uma criança vestida com o uniforme da Seleção Brasileira, a mais nova mortalha oficial da nação. O verde e amarelo da “camisa 10” contrastam com o azul da Estrela de Davi e o vermelho e branco das listras, que cobrem, respectivamente, as bandeiras de Israel e dos Estados Unidos. Ambas hasteadas, num gesto infame, em frente ao Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo (de qual país já não se sabe).

A cena, enquadrada numa moldura preta, em sinal de luto, é de dar engulhos a qualquer um que ainda conserva em si um mínimo que seja de dignidade humana. Em que poço sem fundo estamos metidos!

Como bem escreveu, há alguns dias, o brilhante ator Pedro Cardoso, numa postagem em seu perfil no Instagram, já “não existe Brasil”. O que existe “é um amontoado de gente jogada no mesmo pedaço de chão, convivendo forçosamente, obrigada a se dizer pertencente à mesma nação”.

Tal como Pedro, me recuso a pertencer a “um país que não existe”. Me nego a partilhar da mesma nacionalidade e a compactuar com o falso patriotismo daqueles que clamam por ditadura — embora, curiosamente, se autointitulem como arautos da “liberdade”. Me privo de chamar de “conterrâneos” aqueles que agridem jornalistas e profissionais da saúde e ousam pôr em risco a vida dos demais, aglomerando-se em obscenas carreatas, buzinaços, dentre outras abomináveis “manifestações espontâneas”.

Chego mesmo à conclusão de que o Brasil em que, um dia, vim a acreditar talvez nunca tenha passado de mera utopia. Um ideal, construído sob os auspícios de mentes brilhantes como a de Aldir e de outros tantos notáveis que recentemente nos deixaram: Flávio Migliaccio, Ricardo Brennand, Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Moraes Moreira.

A estes últimos, as minhas mais sinceras homenagens e o meu mais profundo respeito. Àqueles outros, que desdenham do bem comum, enquanto negociam com a morte e deliram numa sanha assassina por poder, todo o meu desprezo e repúdio. Como já cantava Aldir, ao lado de seu amigo-irmão João Bosco: “Glória aos piratas, às mulatas, às sereias/Glória à farofa, à cachaça, às baleias/Glória a todas as lutas inglórias/Que através da nossa história/Não esquecemos jamais”.

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Lucas Bandos Lourenço

Jornalista | Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP