Sessão Tripla #2

Três grandes filmes em três breves resenhas

Lucas Bandos Lourenço
5 min readAug 16, 2019

1. Como eliminar seu chefe

(Nine to Five, EUA/1980, 109 min.)

À época do lançamento de Como eliminar seu chefe (1980), o crítico Roger Ebert profetizou que o filme garantiria seu lugar na história, graças à participação da estrela country Dolly Parton, em sua primeira incursão como atriz de cinema. Hoje, passados quase quarenta anos desde sua estreia, pode-se dizer que o longa-metragem de Colin Higgins confirmou, ao menos em parte, a previsão de Ebert. Afinal, se às vésperas de 2020 a produção ainda merece a atenção do público, isso se deve menos ao impagável desempenho de Parton do que à pungente atualidade dos temas abordados em cena.

Coescrito pela frequente colaboradora de Robert Altman, Patricia Resnick, o roteiro resgata o tom farsesco das screwball comedies dos anos 30 e 40, combinando humor físico e diálogos ágeis, enquanto narra o cotidiano de três funcionárias de um grande escritório corporativo, aos moldes daquele retratado por Billy Wilder em Se meu apartamento falasse (1960).

Viúva e mãe de quatro filhos, Violet (Lily Tomlin) é a supervisora veterana e frustrada com a carreira. Recém-divorciada e em busca de autonomia financeira, Judy (Jane Fonda) é a novata que acaba de entrar para o mercado de trabalho. Casada com um músico, Doralee (Dolly Parton) é a secretária atraente e prestativa, tida por todos como amante do chefe, o misógino Franklin Hart Jr. (Dabney Coleman).

Subjugadas por seus superiores e insatisfeitas com suas condições de trabalho, as protagonistas decidem abrir mão de suas diferenças, unindo-se na luta contra o machismo estrutural que as cerca. Donas de personalidades tão díspares quanto complementares — a ponto de terem sido comparadas às três instâncias da psique humana pelo The Guardian –, elas se veem, aos poucos, enredadas numa trama de chantagem e sequestro, à qual se somam elementos tão rocambolescos quanto uma xícara de café envenenada e um cadáver roubado por engano.

Em meio a esse torvelinho de confusões e trapalhadas, ainda há espaço para reflexões acerca de tópicos como cumplicidade feminina, equidade salarial e assédio sexual — ainda tão em voga nesses tempos de quarta onda feminista, #MeToo e Alexandria Ocasio-Cortez. E é dessa improvável junção entre pastelão e ativismo que o filme extrai sua força, configurando-se como um curioso libelo contra a opressão patriarcal-capitalista, não raro pontuado pela catarse cômica.

2. Adeus, primeiro amor

(Un amour de jeunesse, França e Alemanha/2011, 110 min.)

Um dos diálogos mais espirituosos de Adeus, primeiro amor (2011) se dá na saída de um cinema, enquanto Camille (Lola Créton) e Sullivan (Sebastian Urzendowsky) discutem sobre o filme a que acabaram de assistir. Ela elogia os personagens, os diálogos e o enredo, ao passo que ele, contrariado, dispara: “Não entendo você. É tudo francês demais! Os atores são irritantes.[O filme] é verborrágico, complacente. Achei horrível”.

Revestida da mais fina autoironia, a cena parece antecipar as reações divididas que este terceiro longa-metragem de Mia Hansen-Løve despertaria entre a crítica, após sua exibição em festivais como os de Nova York e Toronto.

Indicado ao Leopardo de Ouro e vencedor de uma Menção Especial em Locarno, o filme traça um relato impressionista — e carregado de tintas autobiográficas — do período de formação intelectual e amorosa da jovem parisiense Camille, dos quinze aos vinte e poucos anos.

Quando seu namorado, Sullivan, parte numa longa viagem pela América do Sul, o idílico relacionamento dos dois se esvai, levando consigo a atmosfera solar que toma conta da primeira parte da projeção. As cores quentes e luminosas do início aos poucos vão dando lugar a tons cinzentos e invernais, que aludem ao iminente (e doloroso) amadurecimento da protagonista.

Após uma série de elipses temporais — introduzidas em cena de maneira elegante e orgânica, com a substituição dos habituais letreiros por rápidos closes de datas registradas em calendários, lousas e páginas de cadernos —, nos deparamos com uma Camille já adulta, às voltas com seu novo par: o norueguês Lorenz (Magne Håvard Brekke), de quem ela fora aluna na faculdade de Arquitetura.

Alicerçado no fascínio da moça pelo curso — “Os lugares me influenciam, por isso preciso compreendê-los”, confidenciaria ela ao seu então professor — , o romance dos dois logo se verá ameaçado pela figura de Sullivan, cuja inesperada reaparição despertará sentimentos há muito adormecidos.

Sem grandes reviravoltas ou arroubos narrativos, Hansen-Løve nos conduz pelo tortuoso percurso de uma educação sentimental, semelhante ao das águas do cristalino rio Loire, nas quais Camille se banha. Como na célebre alegoria de Heráclito, a lição que fica é que “tudo flui e nada permanece”.

3. Praça Paris

(Praça Paris, Portugal, Argentina e Brasil/2017, 110 min.)

Não é de hoje que o cinema da carioca Lúcia Murat tem se ocupado em lançar um olhar marcadamente feminino sobre os abismos sociais, econômicos e raciais que há séculos dividem a população brasileira. Com especial interesse pelas mazelas de seu Rio de Janeiro natal, a diretora vem, desde a década de 1980, traçando um sólido percurso de investigação sobre o cotidiano de um país — e, mais especificamente, de uma cidade — , cindido tanto pela desigualdade quanto pela violência.

Transitando ora pela ficção (Quase dois irmãos; A memória que me contam), ora pelo documentário (Olhar estrangeiro; A nação que não esperou por Deus) — não raro fundindo ambos os formatos (Que bom te ver viva; Em três atos) — , Murat chega ao seu décimo segundo longa-metragem com Praça Paris (2017), drama que flerta com o thriller psicológico, sem abrir mão do comentário social.

Coescrito pelo romancista policial Raphael Montes, o roteiro se concentra na conturbada relação que se estabelece entre Camila (Joana de Verona) — branca, nascida em Portugal e mestranda em psicologia aplicada pela UERJ — e Glória (Grace Passô) — negra, moradora do Morro da Providência e ascensorista no elevador da mesma universidade.

Ao assumirem, respectivamente, os papéis de terapeuta e paciente, as duas se veem obrigadas a transpor o precipício que separa suas realidades — e que surge em cena sob a forma de metáfora visual, tanto na abertura quanto no encerramento da projeção.

À medida que são levados ao divã, os relatos de Glória sobre a brutalidade do pai abusivo e o envolvimento do irmão com o tráfico de drogas passam a se misturar aos próprios conflitos internos de Camila, cuja estabilidade emocional se revela cada vez mais frágil.

Assim, o clima de paranoia que se instala na trama não só contribui para a criação de uma atmosfera de suspense — que prende a atenção do espectador até o último minuto — , como também se coloca a serviço de uma urgente reflexão acerca dos limites que se impõem entre a alteridade e a empatia.

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Lucas Bandos Lourenço

Jornalista | Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP